Reflexões Quixotescas
Esteban Reyes Celedón
Montaigne, pai do ensaio, costumava dar aos seus textos títulos que não tinham muito a ver com o real tema exposto. Assim, caro leitor, após leres este, bem que poderias sugerir um outro título, talvez Reflexões Dulcinescas, para não variar tanto assim do original. Pois vou trabalhar com o similar; vou-lhes falar de uma Dulcinea que pretende ser similar (que é da mesma natureza), mas não semelhante (conforme, de natureza diferente ao original, copia falsa de um modelo verdadeiro), ao Quixote, ou a dom Quixote.
Por acaso, este mês consegui, pela cada vez mais indispensável Internet, uma cópia do livro Dulcinea Encantada -não se trata da Dulcinea do Quixote (ou talvez sim, também); em todo caso, não confundir com o texto de Erich Auerbach-, a autora deste livro é Angelina Muñiz-Huberman. Eu arriscaria chamá-lo de uma obra da tradição de La Mancha, fazendo deste modo um agenciamento com Carlos Fuentes. A incerteza está presente a todo momento; demoramos um pouco para descobrirmos que Dulcinea (personagem principal e narradora da história) não é uma, é várias (ou são várias), duas, talvez três, quem sabe se é uma e várias ao mesmo tempo (uma enquanto narradora; várias enquanto personagem, ou personagens). Ao contrário do Quixote, onde encontramos uma mesma personagem com vários e duvidosos nomes (Quejana, Quesada, Quijada, Quixote, Quijano), na obra de Angelina nos deparamos com, supostamente, várias personagens todas com o mesmo nome (Dulcinea). Ora, todos bem sabemos que o oposto ou negação de alguma coisa está intimamente ligado à mesma; falar ao avesso não deixa de ser uma referência, ou até mesmo uma homenagem, à obra primeira; acaso seja uma alusão, assim como as tantas que Cervantes faz no Quixote. Esta já é uma primeira constatação das muitas características que encontramos nesta obra e que nos dão suporte para classificá-la como pertencente à tradição de La Mancha.
Logo no início de Dulcinea Encantada, ficamos sabendo que esta Dulcinea assim como a outra (a do século de Ouro, que também pode ser ela) não fala; admite desconhecer a arte de falar (11), mas pode e vai pensar; mais especificamente vai pensar suas recordações. Em vez de nos transmitir suas lembranças pela arte de falar, ela o fará por aquela mais nobre que é a arte de pensar (14). Considera os livros uma boa companhia, pois, assim como ela, eles não falam, somos nós que os lemos –nos adverte- (13); interessante constatar o papel do livro como passivo, e o do leitor como ativo. Lembremos que dom Quixote também tem o hábito da leitura; e de tanto ler resolveu tornar-se, ele próprio, um livro de aventuras –deixa de ser um fidalgo de carne e osso para metamorfosear-se em dom Quixote de pena e tinta (a pena da galhofa e a tinta da melancolia, como nos diria Brás Cubas). Também nossa Dulcinea resolve deixar de ser de carne e osso (se é que algum dia o foi) para tornar-se um livro, mas não de pena e tinta, um livro mental (14), pensamento puro, caos -hoje um livro virtual: www.cervantesvirtual.com...
E o que dizer? Ou melhor, o que pensar? Ela nos ensina que o que deve ser dito (pensado) é o que não acontece, aquilo que nunca acontecerá, nem aconteceu (16). Essa é a única realidade; ou seja, pura imaginação com tendência à trivialidade. Pois é, o que chamamos de Real nada mais é do que aquilo que nós enxergamos ou entendemos do Real, que nunca é o próprio Real, já que sempre é parcial. E o romance realista seria realista exatamente por não ser real, não ser verdadeiro. A mais fiel semelhança entre o Real e um romance realista é que tudo o que acontece neste último nos lembra a narração de um grande mentiroso possivelmente real. Coincidências demais, sorte demais, azar demais, sofrimento demais, realizações de sonhos demais, tudo é demais, ou seja, não é real. Quiçá, poderíamos definir romance realista como a arte de narrar semelhante ao balbuciar do mentiroso; onde todos os micro-acontecimentos poderiam ser reais (verossímeis), mas, todos eles juntos jamais. Coincidência ou não (particularmente não acredito em coincidência, para mim, elas pertencem ao realismo e não ao Real), no mesmo século XVII, século do Quixote, o filósofo Leibniz nos ensina que há infinitos Mundos Possíveis; e o nosso, que chamamos de Mundo Real, é apenas mais um, num universo infinito. Um Mundo para ser Real primeiro, ontologicamente, tem de ser Possível; e para que um Mundo seja possível, faz-se necessária que todos os acontecimentos, que dele fazem parte, sejam, além de possíveis, "compossíveis", isto é, possíveis entre si; só deste modo teremos um mundo de fato possível. Voltando para o Realismo, ele seria, conforme o vocabulário de Leibniz, um "mundo incompossível"; e sendo assim, jamais seria Real.
Tudo isso me faz lembrar do Quixote de Cervantes e seu parente próximo, o de Unamuno. Em uma de suas aventuras, dom Quixote descobriu um homem a cavalo, que trazia na cabeça coisa que relampagueava como se de ouro fosse, o elmo de Mambrino (I, 21). Curioso é o fato de que para o narrador se tratava de um barbeiro que trazia a sua bacia de latão na cabeça para da chuva se proteger. Ora, surpreendente são as palavras de Sancho que, talvez para não valorizar nem desacreditar nenhuma das partes, ou quem sabe se por medo, como diria Unamuno, entre "bacia de barbeiro" e "elmo de Mambrino" decide ficar com o "bacielmo" (I, 44). Que ingenuidade a do, não tão fiel, escudeiro; ou é bacia ou é elmo, depende de quem dele se sirva, isto é, é bacia e é elmo ao mesmo tempo. Leibniz nos diria: depende de qual mundo possível você está falando (elmo para o mundo de dom Quixote, um cavalheiro anacrônico, e por isso cômico; ou bacia para o mundo do narrador, um cético sem graça). O que não pode ser é "bacielmo"; e nisto concordariam Unamuno e Leibniz. Por mais que bacia e elmo sejam possíveis separadamente, bacia e elmo são incompatíveis, ou melhor, incompossíveis, num mesmo mundo possível. Disto concluímos que: tanto a visão de dom Quixote como a do narrador são possíveis; e, dependendo dos outros acontecimentos e das suas compossibilidades entre eles e o já descrito (capítulo 21), teremos um mundo possível, e com isto chances de ser Real, ou um mundo incompossível, e com isto chances de ser um relato verossímil, ou seja, uma novela realista. Agora, este micro-acontecimento, chamado por Sancho de "bacielmo", ao não ser possível, não tem a chance de, sequer, ser realista, quanto mais real; e a única chance que deslumbramos é a de pertencer a um "relato fantástico", com o qual é excluído do Quixote, por ser este último unanimemente reconhecido como um romance realista. Resta ao "bacielmo" esperar por, quem sabe, uma reescritura, fantástica claro.
Então, caro leitor, não se surpreenda se um dia me ouvir afirmar a bacia do barbeiro e em outro o elmo de Mambrino, pois estamos diante de duas interpretações diferentes, porém possíveis (Unamuno era conhecido por usar esse direito nas suas aulas ou palestras). E não somos os únicos a defender essa bandeira; lembremos a Roland Barthes (citado por Joseph Jurt, na sua recente passagem pelo Brasil) que, em critique et vérité, considera uma obra "eterna" não por impor um único sentido (interpretação) a diferentes pessoas (Barthes, na verdade, fala de hommes différents, mais não quero ser acusado de machista, por isso, para ser mais ético e democrático com nossas companheiras, prefiro falar em "pessoas"), mas em razão dela, a obra, sugerir vários sentidos (interpretações) a uma mesma pessoa.
Ora, não vamos confundir as coisas. O Quixote é, sem dúvida, uma obra eterna, ela de fato nos possibilita várias interpretações. Mas isto não quer dizer que toda e qualquer interpretação seja válida. Por exemplo, com freqüência encontramos pessoas que consideram dom Quixote um louco por ele acreditar nos livros de cavalaria e confundir estes com o mundo real (não há problema no acreditar, e sim no confundir). Só que estas mesmas pessoas esquecem que o próprio Quixote é um livro de cavalaria também e o tomam como se real fosse. Ou seja, confundem o Quixote com o mundo real, o que pela sua lógica nos levaria a concluir que eles (essas pessoas) são uns loucos. E digo mais, eles são mais loucos, pois dom Quixote é de fato uma personagem da ficção (que finge-se de louco para assim poder zombar do cura e do barbeiro –como afirma Martín Santos em Tiempo de silencio-, e por meio deles, da Igreja e da sociedade); e eles... são o quê? Pergunto eu.
Mas voltemos ao nosso livro, outra coincidência entre dom Quixote e nossa Dulcinea é que para os dois foi Amadís de Gaula seu guia e exemplo. Contudo, Dulcinea leva certa vantagem, ela se apaixonou por ele, e ele por ela. Confessa-nos: um dia o conheci, faz tempo, e o que vivemos juntos não está no romance, mas eu o levo escrito dentro de mim (17).
Dulcinea critica o romance escrito, pois para ela, as palavras não são nada, absolutamente nada; apenas signos arbitrários para representar o falar (31), um falar que Dulcinea não fala. Por exemplo, loucura, não é a loucura em si (22), (como muitos leitores do Quixote supõem). Loucura é apenas uma palavra, é apenas um signo, como também o é dom Quixote (um signo, uma letra, feito de pena e tinta). Ela e seu romance são feitos de pensamento, de histórias, tantas histórias que às vezes não sabe qual escolher, com qual ficar (26).
Somos mais fonéticos que semânticos –afirma Dulcinea- (51). Às vezes inventamos palavras que tem um belo som, mas nada além disso (exemplo: amar). Ela parece pertencer ao tempo dos aedos, tempo do som, do ritmo e da harmonia; ou, talvez, pertença só às lembranças (e as melhores são as que nunca aconteceram), às lembranças imaginadas, que são as melhores (70). Recordemos que para dom Quixote "Dulcinea" é um nome musical, peregrino e significativo (e por que não dulce: doce, que significa suave, afetuoso, benigno; mas, também, que agrada ou causa prazer), como todos os que ele inventa (I, 1).
E continuam as sincronias entre Dulcinea e Quixote. Dulcinea nos esclarece que cada história carrega a crença, quando a ouvimos acreditamos nela, ao ser repetida é acreditada, até que se torna verdade (77), assim como os cavalheiros lidos pelo fidalgo. Dulcinea tem poucas certezas e muitas dúvidas. De fato, sua única certeza é andar pelos caminhos (80), não importando qual –qualquer caminho é bom quando qualquer é o lugar de chegada (180)-, assim como o faz o Cavalheiro quando deixa que seu rocim escolha por qual bifurcação seguir, necessário é seguir (ou talvez navegar, diria Ulisses; "Navigare necesse; vivere non est necesse", frase de Pompeu, general romano, 106-48 a.C., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra). Quando lhe perguntam a que se dedica, ela responde: a escrever romances mentais, sou o processo mesmo da criação (92). Da mesma forma que dom Quixote, de pena e tinta, torna-se um livro de aventuras, a própria criação. Dulcinea nasceu para ser escritora, tudo ela inventa (82). Aflorou do nada, não tem lembranças do princípio (134). Sequer tem pais, nasceu por geração espontânea (32). dom Quixote tampouco tem pais, já nasce cavalheiro, aos cinqüenta anos pelo que ouvi falar, talvez tenha sido fidalgo (filho de algo); o próprio Cervantes o nega como descendente: sou apenas o padrasto, confessa-nos no prólogo. Dulcinea e dom Quixote são seus próprios progenitores, os iniciadores, sem ninguém que os anteceda nem suceda (179).
Porém, quem é Dulcinea? Ela mesma responde: sou Dulcinea e também Dulcinea e também Dulcinea (92). Mais do que afirmar ser três dulcineas, nos revela ser Dulcinea na eternidade (no presente, no passado e no futuro) ou então fora do tempo (como Alice no país das maravilhas ou Altazor de Huidobro; seja dito de passagem, as semelhanças com Altazor são várias: o tom de confissão, profético; a dúvida de ser, de quem ser; a divisão em sete partes –sellos ou cantos-; o tema da criação, da semântica e da fonética; a viagem ou queda até a colisão; e o final transcendente).
Como já dissemos, Dulcinea é dúvida, é cheia de dúvidas, é por demais incerta (como dom Quixote: de incerta origem, de incerto lugar, de incerto nome, incerto). Com tantas dúvidas não há tempo para se perguntar: e se tivesse sido diferente? Dulcinea não suporta o pretérito do subjuntivo (95). Tempo de hipótese impossível, de desejo negado, da melancolia inoportuna, do que poderia ter sido e não foi, do acontecimento que não aconteceu. Si tivesse. Não existe esse tempo. Tempo inútil e imoral. Tempo apagado (96). Dulcinea é do imperfeito, tão imperfeito, habitual e cotidiano: soía, fazia, escrevia, escutava, caminhava. Dulcinea gosta do tempo cálido em noite de inverno, do rito e da repetição, de relatar os contos de fadas (era uma vez), e os mitos antigos (96). Dom Quixote não tem passado, mas passa o tempo falando do passado: da cavalaria, dos gregos e romanos (mesmo que por alusão).
Dulcinea é lixo. Sou de plástico –nos confessa- (108): descartável, rejeitável, permutável (109); reciclável, diríamos hoje. Não somos únicos como pensamos. Repetimos e voltamos a repetir o mesmo que outros já repetiram e repetiram (118). Isto me faz lembrar de Borges quando afirmava: ninguém inventa nada, pois sempre há alguns malditos antecessores que já inventaram muitas coisas antes que nós. Talvez, Dulcinea queira-nos alertar da dívida que tem a Literatura com Cervantes, alguma coisa similar à dívida que tem a Filosofia com Platão. Cervantes inventou o realismo e o que nós temos feito desde então é repetir e voltar a repetir aquilo que outros já repetiram. Hoje tem um nome mais bonito (musical, peregrino e significativo): reescritura; e que Carlos Fuentes batizou de a tradição de La Mancha.
Resta-nos, então, inventar a realidade (110); imaginar (128); criar um livro mental -se o silêncio é a única linguagem (138), um romance só pode ser mental. Mas, quando Dulcinea fala de silêncio, refere-se à ausência de palavras e não à ausência de sons, de música. Quando ela escreve, no seu interior, o faz em todos os tempos: tempos gramaticais, tempos musicais, e tempos de dança (145). Trata-se de uma história ao compasso da flauta, do alaúde, da harpa e da viola; uma história com coreografia de tarantela, ronda ou outras danças. Mais do que um livro, o que temos é uma representação teatral ou um balé; em vez de palavras, movimento, música e pantomima. Como o fidalgo que, após ler e ler e ler, decidiu sair na alva, do dia, mas não da idade, para representar um cavalheiro nas suas aventuras e peripécias; movimentos, batalhas, acontecimentos inesperados; teatro e balé, representação e movimento.
Dulcinea decide escrever seu diário. Porém, não o diário da sua vida, é um outro diário: daquilo que não sabe, daquilo que não entende, daquilo que não é verdade nem se manifesta. Vai escrever sobre Amadis, que é seu duplo sua alma gêmea (169). Quem é dom Quixote senão a alma gêmea de Quejana, Quesada, Quijada ou Quijano? Quem é dom Quixote senão o duplo de si mesmo? O que é o Quixote senão um outro diário? Um diário da alma, um diário metafísico, um diário anacrônico (fora do tempo, como Dulcinea, Alice ou Altazor). Dulcinea não tem lugar neste mundo (173), assim como dom Quixote não tem, por isso é invadido pela melancolia, por isso desiste, por isso transforma-se em Quijano o bom e decide morrer.
Contudo, "talvez o problema seja ao contrário. A única vida possível seja a de Dulcinea. Só vive quem lê, quem cala, quem recorda. Porque a vida é o vivido. Porque a realidade é o conhecido" (176). Talvez a única vida possível seja a de dom Quixote. Por isso Sancho implora sua volta. Errados estejam os outros: o cura e o barbeiro; a Igreja e a sociedade. Talvez a vida seja como à saída de uma caverna: não sabemos se foi sonho ou realidade (181).
Onde estamos não é onde estamos. Onde pensamos, sim (125). O Pretérito acaba (189). E "se abrem as portas (do céu)" (190).
E assim também acaba nosso ensaio. Como adverti no início, trabalhei com o similar; e quando dizemos que Q é similar a D, também podemos afirmar que D é similar a Q (são da mesma natureza). Por isso, tanto faz dizer que trabalhei com o Quixote similar a Dulcinea, como Dulcinea similar ao Quixote. Mas, se fosse Montaigne creio que escolheria um outro título pare este ensaio. Vou mudar; que tal, Reflexões Manchegas? (pertencentes à tradição de La Mancha). Sim, é isso, Reflexões Manchegas, ou talvez Manchescas, Machadianas, Maaa...
Reflexões.
Rua dos Douradores, 30 de novembro de 2005.