Pensamentos Quixotescos:

Do Primeiro Capítulo do Quixote

Das gentes populares, uns aprovam

A guerra com que a Pátria se sustinha;

Uns as armas alimpam e renovam,

Que a ferrugem da paz gastadas tinha;

Capacetes estofam, peitos provam,

Arma-se cada um como convinha;

(Camões: Os Lusíadas, IV, 22.)

Soube, de alguém que visitou Buenos Aires, que a mãe de Jorge Luis Borges, dona Leonor, morreu aos 99 anos. Que pena!, exclamou um senhor no momento de dar os pêsames ao escritor, se tivesse vivido mais um ano teria chegado aos cem. Borges, bem-humorado como sempre, respondeu: Que admiração tão curiosa tem o senhor pelo sistema métrico decimal! Na verdade, a maior parte dos humanos (que tem cinco dedos em cada mão) tem uma grande tendência a super valorizar o sistema métrico decimal. O último ano fora de muitas homenagens e poucas leituras de Neruda (só por causa do seu centenário). Paradoxalmente parece que é mais importante o numero cem do que ler a obra literária. Hoje pouco se lê no Chile de Neruda e Mistral, de Parra e Rojas; e consequentemente quase nada se escreve; o que é pior, jovens vão até Cusco pichar muros pré-colombianos.

Este ano também vai ser de muita comemoração de centenário. Se um centenário já é importante imaginem quatro. O Quixote, de Cervantes, completa quatrocentos anos de sua primeira edição. Deixemos as homenagens para aqueles que não lêem e façamos alguma coisa mais digna da literatura: leiamos; e, se possível, escrevamos algum pensamento quixotesco. Mas, vamos com calma. Que tal começarmos com o primeiro capítulo do Quixote (Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo dom Quixote de La Mancha).

Num lugar de La Mancha, que pode ser Miguel Esteban, por exemplo, ou qualquer outro povoado da região, pouco importa a precisão do lugar, vivia alguém, um representante "das gentes populares" talvez, pouco importa quem. O lugar do nascimento é impreciso, a data também. Já conta com uns cinqüenta anos; nada sabemos de sua infância, de sua juventude e quase nada de sua maturidade. E, esse quase nada, quiçá, não passe de um engano; engano que, acompanhado da crença, vale mais que a verdade na qual não se acredita (Unamuno, p.176). Talvez fosse uma espécie de santo, daqueles que não comem carne as sextas-feiras, só lentilha. Não conhecemos seus pais, sua linhagem (para Unamuno, p.26: sua linhagem começa nele); pode ter sido filho ilegítimo; "único herdeiro (ainda que bastardo) verdadeiro" (Camões, IV, 2.). Sequer seu nome é certo: Quijada ou Quesada. O único certo é a sua história, bem verdadeira; não sua história passada, sim sua história futura (aquela que começa com ele, naquele momento incerto).

Foi aficionado pela caça, depois pela leitura, livros de cavalaria, é o que dizem. Esforçava-se por entender que "há razões que a própria razão desconhece, são as razões do coração". E assim, de muito ler e pouco dormir, desistiu das razões da razão para ficar com as do coração. Sendo muito mais homem de ação do que de contemplação, decidiu fazer-se pastor ou sacerdote, não me recordo bem, cavalheiro andante (é mais provável). Então partiu pelo mundo para difundir "as razões do coração". Mas antes: as armas alimpa e renova, que a ferrugem da paz gastada tinha; capacete estofa, peito prova.

Depois, foi preparar o seu rocim. Para ser coerente com estas outras razões, achou por bem, já que ele próprio tinha mudado de estado, "mudasse ele (seu rocim) também de nome". Agora não era mais rocim, foi-lo antes; passou a chamar-lhe de Rocinante. E ele, senhor de tão alta missão, merecia um nome que lembrasse seu reino e pátria. Certamente lembrou de Tales de Mileto, Tomás de Aquino, Amadis de Gaula; decidiu chamar-se "Dom Quixote de La Mancha". Só faltava a quem dedicar "as razões do coração", pois não existe corpo sem alma. Então lembrou de uma moça lavradora e resolveu que ela seria a senhora dos seus pensamentos; veio a chamá-la "Dulcinéia del Toboso".

Foi assim que nasceu Dom Quixote, "descendente de si mesmo, nasceu em espírito ao decidir-se que sairia a procura de aventura" (Unamuno, p.32). Dom Quixote metáfora da vida espiritual; Dom Quixote metamorfose do corpo em alma; Dom Quixote metafísico, indivíduo incompreensível pela transcendência dos seus atos; Dom Quixote meta, alvo, limite. Não é apenas a transformação do leitor em ator; é a transgressão dos limites do corpo; renovação interior, diz Unamuno, pois não só de pão vive o homem. Transformação necessária para mostrar à humanidade que além do corpo está a alma; indicar um novo caminho possível; sugerir a existência de "infinitos mundos possíveis" (como teorizará Leibniz, algumas décadas depois): mundos de sonhos, lutas, encontros e desencontros, de esperança e principalmente de fé.

Como um cristão novo, Dom Quixote nasce sem passado, reconhecido como filho, ainda que bastardo, verdadeiro. Dom Quixote filho de moro (Cide Hamete Benengeli) foi achado por acaso, a semelhança de Los libros plúmbeos del sacromonte (descobertos por obreiros mouriscos em Granada). Artifícios para autenticar a veracidade dos achados. "Isto, porém, pouco faz para a nossa história; basta que, no que tivermos de contar, não nos desviemos da verdade nem um til".

Bibliografia:

A) Edições críticas com texto original:

· CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha, I. Editado por José Golacheca (com introdução). Madrid: Mestra ediciones, 1999, 2001.

· ____________ Don Quijote de la Mancha, II. Editado por José Golacheca. Madrid: Mestra ediciones, 1999, 2000.

· ____________ El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Ed. Rico. Biblioteca Virtual Cervantes. (www.cervantesvirtual.com).

B) Tradução:

· CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Tradução: Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 2002.

C) Outros:

· CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 2002.

· CASE, Thomas E. Cide Hamete Benengeli y los libros plúmbeos. Bulletin of the Cervantes Society of America 22.2, 2002. pp. 9-24.

· MONTAIGNE, Michel de. Ensaios (volumes I e II). Coleção: Os Pensadores. Com introdução de Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1987.

· UNAMUNO, Miguel de. Vida de Don Quijote y Sancho. Madrid: Alianza Editorial, S.A., 1987.

 

 

Esteban Reyes Celedón.

Rua dos Douradores, 16 de janeiro de 2005.

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