Nem Galo nem Cachimbo, muito pelo contrário.

Esteban Reyes Celedón

Na segunda parte do Quixote, quando se narra Do ridículo arrazoamento que houve entre dom Quixote, Sancho Pança e o Bacharel Sansão Carrasco, o cavaleiro compara o autor das suas histórias, um falador ignorante, com Orbaneja, pintor de Úbeda, quem fazia seu trabalho meio que displicentemente. Se, por exemplo, pintasse um galo, fazia-se necessário escrever-se-lhe ao pé do quadro: Isto é um galo. Imaginamos que Orbaneja tenha sido o primeiro artista plástico abstrato. Pelo que nos revela nosso fidalgo, o artista de Úbeda, em vez de se preocupar em imitar o máximo possível a realidade, preferia fazer umas manchas disformes. Talvez essas manchas fossem similares às do início do Quixote: em um lugar da Mancha. Dom Quixote acreditava que o mesmo aconteceria com sua história, alguém teria que fazer alguns comentários (talvez escrever notas de rodapé, diríamos hoje), para que fosse possível compreendê-la. (II, 3). O que podemos entender desta comparação feita pelo cavaleiro da triste figura? É exatamente o que pretendemos responder a seguir. Mas há uma questão primeira: Faz algum sentido relevante a análise dessa passagem? Claro, pois fala da necessidade dos comentadores para o real, maior e melhor entendimento do romance –ou de qualquer outra obra de arte, e indo mais longe, para qualquer criação do pensamento humano, seja ela no campo artístico, científico ou filosófico- Ou seja, Cervantes, na voz de dom Quixote, está qualificando ainda mais o "desocupado leitor" da sua obra.

Se no prólogo da primeira parte o autor já nos advertia que para ler seu livro tínhamos de ser algo mais do que leitores, desocupados leitores, agora acrescenta: talvez seja necessária a intervenção de comentadores. Quer dizer, se o "desocupado" do prólogo tanto podia fazer referência a um leitor com tempo disponível e interessado apenas em se divertir com a história, como a um especialista disposto a ocupar seu valioso tempo numa leitura séria e a fundo do texto, agora (II, 3), com esse novo adjetivo (comentador), Cervantes inclui também um novo sujeito que, além de ser leitor (desocupado leitor, como os anteriores), também deve ser escritor. Pois é, o comentador é aquele que lê, entende, e explica a obra; cabe a ele escrever: isto é um galo. O artista pinta, o comentador interpreta; Cervantes escreve, o comentador escreve suas interpretações, por exemplo: nem galo nem cachimbo, muito pelo contrário.

Então, vamos ao trabalho. Já que dom Quixote cita um pintor e sua obra, nós também faremos o mesmo. Em 1926, o pintor belga René Magritte (1898-1967) pintou um quadro onde observamos um cachimbo e embaixo dele umas letras (grafismo) que dizem "Isto não é um cachimbo". Se tivesse escrito "isto é um cachimbo" estaria a mentir -ele mesmo confessa- Conclusão imediata: o desenho de um cachimbo não é um cachimbo; e a palavra cachimbo (ou grafismo) tampouco é um cachimbo. Já em 1966, Magritte pinta um outro quadro onde observamos, à esquerda em cima, um cachimbo cinza flutuando no ar com fundo cinzento e, à direita embaixo, um quadro (isso mesmo, um quadro menor dentro do quadro maior), com fundo preto (pelo qual também poderia tratar-se de um quadro negro) no qual há um cachimbo desenhado no meio e logo embaixo dele a frase: "Isto não é um cachimbo". Conclusão imediata não há, e desconfiamos que tampouco fosse para ser imediata a conclusão da primeira obra. O que há é a proposta de um problema, um produto do pensamento artístico que levou tempo para ser criado e executado; e por sua natureza inovadora merece ser meditado, com calma. Esse deve ser um dos motivos que levou ao pensador francês Michel Foucault (1926-1984), em 1973, a escrever um livro com o título: "Isto não é um cachimbo". Nesse pequeno, porém, interessante texto, Foucault faz sua leitura, interpretação e comentário da obra do pintor belga.

Ora, acreditamos que Magritte não satisfeito com a repercussão do primeiro quadro (1926), quarenta anos depois decide fazer um outro onde esteja mais evidente a não banalidade da sua obra. Sem dúvida o conseguiu, e o livro de Foucault é prova disso. O pensador francês, no capítulo V, nos fala da diferença entre similar e semelhante, para depois fazer as leituras que considera possíveis com relação ao quadro de Magritte. Fazendo um agenciamento com Foucault chegamos às seguintes definições.

1.- Como semelhante entendemos: quando uma coisa (objeto ou pessoa) é conforme a outra (objeto ou pessoa), ou seja, uma possui a forma da outra; uma coisa que seja de natureza diferente ao original, cópia falsa de um modelo verdadeiro. Por exemplo: os seres humanos somos semelhantes a Deus, temos a mesma forma, supostamente, do criador, mas não passamos de cópias de um modelo original que é de uma outra natureza (nós somos de carne e osso, Deus é espiritual); o quadro de Michelangelo que tenho na parede da minha sala é semelhante à "criação do homem" que está no teto da Capela Sistina, têm a mesma forma, mas são de natureza diferente (um foi feito a mão, o outro é uma fotografia daquele), o italiano é original, o meu não passa de uma cópia, um é verdadeiro, o outro falso; o cachimbo de 1926 é semelhante a um cachimbo real, mas não é cachimbo, não podemos utilizá-lo para fumar. Falar em semelhança é afirmar uma negativa, uma desqualificação, uma inferioridade, uma falsidade, uma imitação, uma falsificação inútil, é reconhecer que entre o original e a cópia há uma diferença intransponível, uma diferença de natureza.

2.- Como similar entendemos: quando temos duas ou mais coisas (objetos ou pessoas) da mesma natureza, formando parte de uma mesma série. Por exemplo: os humanos somos similares entre nós; as fotografias são similares entre elas; os cachimbos de 1966 são similares entre si, todos dois são falsos, cópias, representação, simulacros, mas também são originais. Falar em similar é afirmar e confirmar uma positividade, uma qualidade, uma igualdade, uma potencialidade recíproca entre os objetos da série (mesmo que estes objetos sejam simulacros). Na similaridade todos são o que são, pura potencialidade (mesmo que seja a potência do falso).

Metaforicamente, a semelhança é uma ditadura, já a similaridade uma democracia (sem direito a corrupção). E, o que tudo isso tem a ver com a comparação de dom Quixote? Bem, o fato é que o galo de Orbaneja, parecendo ou não com um galo real, não é um galo, é uma representação pictórica; e mesmo se alguém escrever ao pé do quadro "isto é um galo", continua não sendo galo, apenas uma representação pictórica. Não sei se Magritte leu o Quixote, mas, sem dúvida, ele nos ajudou em muito a entender as palavras de dom Quixote. Quando o pintor belga escreve "isto não é um cachimbo" logo abaixo do desenho do cachimbo, o que está denunciando é a natureza pictórica, tanto do cachimbo quanto do grafismo; indiretamente nos está avisando: há uma diferença de natureza entre meu cachimbo desenhado e um suposto cachimbo real que tenha servido de modelo (um é semelhante ao outro). E por mais que seu cachimbo seja semelhante a um cachimbo real, ele não é um cachimbo.

Contudo, Magritte vai mais longe. Além de denunciar ele quer afirmar, quer confirmar a potência da sua obra, a potência da obra de arte, a potência do simulacro e do falso. Por isso cria uma série de cachimbos, e deste modo consegue ressaltar a força da similaridade. Não interessa se seu cachimbo é ou não semelhante a um modelo, o que realmente tem valor é o fato de seus cachimbos serem todos similares; sua obra é uma criação e tem valor por ela mesma e não por pretender parecer, mais ou menos, com um modelo. Seus cachimbos são reais enquanto se afirmem como aquilo que eles são: uma obra de arte. O que está em questão é a força da obra de arte. A criação artística tem mais valor (ou valor positivo) quando consegue se libertar da semelhança e passa a proclamar sua própria natureza; e isso se consegue através da similaridade.

Então, o que dom Quixote está denunciando, ironicamente, é que sua história será mais bem compreendida se reconhecida como similar a outras histórias (cavalaria, bizantina, picaresca, pastoril) e não como semelhante à vida real. E por que digo ironicamente? Porque dom Quixote acusa o narrador da sua história de ser um falador ignorante, mas o autor real da obra é Cervantes e dom Quixote um personagem por ele criado. O fidalgo, ou melhor, Cervantes é irônico ao atribuir-se a culpa pelo leitor não compreender a história, como se tudo fosse responsabilidade da incompetência do autor em não saber narrar adequadamente as peripécias do cavaleiro. Contudo, bem sabemos que não há problema nenhum com o autor (muito pelo contrário), e que o problema de entendimento e compreensão da obra é de responsabilidade do leitor, daquele desocupado leitor, cabe a ele ver a similaridade do Quixote com os outros romances em vez de procurar, indevidamente, a semelhança com a vida real.

Trabalhando com a semelhança poderíamos dizer que, assim como o segundo cachimbo de Magritte, aquele de 1966 que está no quadro dentro do quadro, dom Quixote não é a coisa em si, é a representação da representação. Dom Quixote seria então a representação em segunda ordem (a cópia da cópia, diria Platão, e como tal não teria valor ontológico). O nosso cavaleiro seria uma representação dos outros cavaleiros medievais, que por sua vez, não passavam de representação (assim como o cachimbo do quadro menor é representação do cachimbo maior, que por sua vez também é uma representação). Porém, para descobrirmos o verdadeiro valor de dom Quixote devemos vê-lo como similar aos outros cavaleiros (não como cópia, não como representação inspirada num modelo). O fidalgo é um cavaleiro, assim como qualquer outro cavaleiro de romance de cavalaria; seu valor está nele, assim como seu progenitor é ele mesmo; não vem de, nem vai a; só tem afirmação, só presente, só aventuras.

Além disso, podemos observar, por exemplo, que dom Quixote vê similaridade também entre ele e seu escudeiro. E por ver em Sancho um similar pode passar o dia todo conversando de igual para igual com ele; pois dom Quixote em vez de afirmar a hierarquia entre cavaleiro e escudeiro, em vez de marcar a desigualdade entre eles, em vez de desqualificar seu companheiro, nosso cavaleiro prefere confirma a similaridade que há neles (com algumas diferenças, mas de grau não de natureza), como se fossem professor e aluno (estando ambos nessa mesma aventura como andarilhos, dispostos a aprender com suas peripécias). E, será que dom Quixote também vê a Dulcinea como similar? Bom, isso fica para uma próxima oportunidade, por merecer um trabalho todo especial.

Por outro lado, Cervantes não é só irônico ao desqualificar ao narrador da história de dom Quixote. De fato, tudo se passa como se o narrador fosse mesmo um falador ignorante. Mas, ignorante por quê? Porque vê semelhança onde deveria ver similaridade, ou melhor, procura semelhança onde realmente não há nem poderia haver a não ser similaridade (trata-se de uma obra de arte, de um romance, uma história realista não real); quer desqualificar a "mancha" por não ser galo, quer negar "La Mancha" porque não é Espanha, chama de louco nosso herói por não ser covarde como outros (covarde como aqueles marinheiros amedrontados do general Pompeu).

À guisa de exemplo, e para sermos mais precisos, propomos analisarmos uma das passagens, aventuras, mais conhecidas do nosso cavaleiro: o combate contra os gigantes (I, 8).

É simples. Dom Quixote vê trinta ou mais desaforados gigantes; o cavaleiro vê qualquer coisa similar ao que Amadis ou qualquer outro personagem de romance de cavalaria teria visto: gigantes e aventura. Já o narrador descreve um campo com trinta ou quarenta moinhos de vento. Ele tem como modelo o mundo real, então tudo o que se passa no Quixote tem de ser semelhante ao mundo real. Se fosse real, haveria, nos campos de La Mancha (região de Espanha), moinhos de vento e não gigantes (pois estes pertencem ao mundo da cavalaria) e para o narrador as coisas tem de ser como na realidade e não como num romance de cavalaria; e mais, conclui que dom Quixote é um louco (ou está louco, já que no final da história voltaria a recuperar o juízo), por tomar a realidade como se de romance se tratasse. Há ainda a versão, ou visão, de Sancho Pança, que adverte ao seu cavaleiro a presença de Moinhos de vento e não de gigantes; mas, essa é outra história, como já disse dom Quixote e também Unamuno: o medo e só o medo faz ver a Sancho, e nos faz ver a nós simples mortais, moinhos de vento onde há desaforados gigantes que semeiam o mal pela terra.

Ora, não se trata de loucura, ninguém está louco. A diferença está na suposta ignorância do narrador que não entende que um romance de cavalaria deve ser similar a um romance de cavalaria. Dom Quixote está certíssimo ao ver gigantes e aventura em La Mancha metafórica; o narrador está enganado, confundiu uma obra de arte com a realidade, ainda está preso à representação. O narrador ainda vê galo mal desenhado e cachimbo inútil onde o corajoso cavaleiro vê a potência de uma grande obra de arte, suas próprias aventuras. Compete, então, ao comentador advertir o leitor e escrever numa nota de rodapé: isto é um gigante (ou estes são trinta ou mais gigantes). Se tivesse escrito "isto é um moinho de vento" estaria a mentir.

 

Rua dos Douradores, 12 de dezembro de 2005.

 

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