Mentira, Sonho e Literatura.
E por falar em mentir: O que há em comum entre a mentira e a literatura? E mais, o que há em comum entre sonho e literatura? Acaso seria a ilusão de tomar uma coisa por aquilo que ele não é? Ou, há um valor positivo? Talvez a imaginação (phantesia) de Flavius Filostrato.
Em 1780, a Real Academia Espanhola editava o Quixote, em quatro volumes. No Prólogo a essa edição estava a “Análise do Quixote” escrita por Vicente de los Rios[i], que considerava como tema central do Quixote a distinção entre ilusão e realidade, e afirmava que o romance épico (o que Dom Quixote sonhava) estava incluído no romance realista (o que Dom Quixote vivia)[ii]. Interessante essa análise, pois, substitui a loucura pela ilusão[iii]. Se lermos novamente o Quixote, só que desta vez substituindo a suposta loucura do cavalheiro por ilusão, ou seja, como um aspecto pontual e não durativo, constataremos que esta nova leitura/interpretação é mais coerente e próxima do entendimento (ou percepção) dos valores sociais contemporâneos. A loucura tem a sua história e seu lugar na escala dos valores sociais, Foucault já nos chamou a atenção para isso. Os supostos enganos cometidos pelo cavalheiro andante estão, hoje, mais próximos do que chamamos de ilusão do que da loucura (entendida como insanidade).
Mas, não é nesse assunto que pretendemos nos deter no momento. Queremos resgatar a idéia de ilusão, que como foi exposto, é atual, porém não recente, para relacioná-la com a mentira, o sonho e a literatura. Entenda-se aqui por mentira um relato mentiroso, daqueles que são contados pelo filho que não foi à escola, ou pelo marido que chegou tarde em casa, ou pela esposa que foi ao dentista. Conta-se uma história verossímil, onde quase tudo é real e aconteceu, só que não necessariamente nessa ordem ou então não foi vivida pelo sujeito que a narra (é claro que na maioria desses casos conta-se com a boa vontade do ouvinte de querer ser enganado, ou preferir não saber do primeiro engano). Há de se destacar aqui o efeito criado no receptor, a ilusão da história ser verdadeira. Coisa similar acontece com o sonho. Quando sonhamos, tudo se passa como se real fosse. Por mais absurdo que sejam os acontecimentos, estamos convencidos de que são reais. Do mesmo modo que na mentira, o sonho cria na pessoa a ilusão de que a história é verdadeira.
Agora, na literatura, na ficção literária, realista ou não, é narrada uma história, que, para ser bem entendida e para que ela alcance os efeitos desejados (por exemplo, uma comedia fazer rir), é fundamental que o leitor (ou ouvinte, caso alguém esteja lendo para outros, como era comum na época de Cervantes) acredite na trama, que pense que é real (mesmo que aparentemente seja impossível). Também neste caso conta-se com a boa vontade do leitor/ouvinte de querer ser enganado (faz parte do jogo, senão não tem graça). No relato literário, assim como no relato mentiroso, espera-se criar no receptor a ilusão de que a história é verdadeira. O realismo, sabendo disso, abusa das referências ao real, para assim não deixar o receptor desconfiar da sua ilusão.
Constatamos que a mentira é mais do que a verdade; a mentira se aproveita da verdade e a ultrapassa. O sonho, da mesma forma, tem essa qualidade de ultrapassar a verdade (o real) e nos convence de absurdos maiores do que a mentira. Com a literatura não é diferente, ela nos persuade, aproveitando-se do mundo real, incorporando-lo e ultrapassando-lo, desse modo nos engana. A ficção realista está para a mentira, assim como a ficção fantástica está para o sonho. Uma obra realista é uma grande mentira ou uma série delas (como aquela de Cervantes que nos induz a pensar que o cavalheiro está louco); na obra fantástica (que vem de phantastikós, phantasía e significa imaginação ou fruto dela) tudo se passa como se fosse um sonho, às vezes como uma pesadelo. Interessante notar que um relato considerado fantástico pode-se tornar rapidamente num relato realista; é só introduzir uma personagem que, nesse preciso momento, acorda agitado; o leitor então conclui: tudo não passou de um sonho, o sonho é fantástico, mas sonhar é verossímil. Ou seja, o fantástico também pode estar numa narrativa realista, assim como a mentira. Aliás, no Quixote encontramos os dois: sonho e mentira a serviço do realismo.
O primeiro e grande mentiroso do clássico espanhol não é o escudeiro nem o historiador arábigo, é dom Miguel de Cervantes Saavedra, que tem a petulância, a audácia, de nos mentir logo no inicio[iv]. Não estou falando de “um lugar da Mancha” (início do primeiro capítulo), nem no, talvez irônico, “desocupado leitor” (início do Prólogo), refiro-me ao título, isso mesmo, o título da obra: O engenhoso fidalgo Dom Quixote da Mancha. Pois é, Dom Quixote da Mancha ou mancha ou mácula ou de onde quer que seja[v], não é fidalgo (filho de algo, nobre), a não ser que se entenda no sentido de generosidade, ai sim, Dom Quixote é fidalgo, é generoso[vi]. Mas, no sentido de nobreza, da classe dos nobres, da classe dos fidalgos, não, isso Dom Quixote não é. Dom Quixote é um cavalheiro andante. Fidalgos podem ser os outros: Quijada, Quesada, Quijana, e, o mais provável, Alonso Quijano o Bom (se é nobre, é bom).
Sancho Panza, o nem tão fiel escudeiro, também mente, sem o menor pudor, principalmente quando se refere a Dulcinea do Toboso[vii]. Contudo, há uma mentira explícita, no capítulo 41 da segunda parte, na viagem no Clavilenho, Sancho afirma ter visto o que não viu e todos sabem que não viu[viii]. Dom Quixote sabe que “ou Sancho mente ou Sancho sonha”, são as únicas possibilidades coerentes com uma obra realista. Isso, ele sabe muito bem, apesar do cavalheiro não mentir, sabe que a mentira é possível; do mesmo modo, sabe que os sonhos justificam o injustificado da realidade; ele mesmo já passou por dois sonhos, ou melhor, por duas aventuras fantásticas que são explicadas pelo sonho: a cova de Montesinos (II, 22), e, a descomunal batalha contra os odres de vinho, supostos gigantes (I, 35).
Podemos afirmar que o irreal, o inverossímil, passa a ser considerado real ou, pelo menos, verossímil, se entendido como uma mentira ou um sonho. A mentira e o sonho causadores de ilusões nas personagens. Isto explicaria muitos acontecimentos “fantásticos” narrados no Quixote. A outra explicação seria a ilusão, pura e simplesmente. Dom Quixote teria a ilusão de ver gigantes, a ilusão de ver Castelos, a ilusão de ver lindas donzelas, etc. Ou, quem sabe, é Sancho (ou até mesmo o narrador) que tem a ilusão de ver moinhos de vento, a ilusão de ver vendas, a ilusão de ver rudes camponesas, etc[ix]. Agora, até que ponto a explicação é uma explicação de fato ou não passa de uma ilusão criada no leitor, é um assunto para ser discutido com calma.
A ficção trabalha com o “como se”: tudo se passa “como se” fosse real. Só que esse “como se” não remete àquilo que é dito ou escrito e sim ao que deve ser imaginado. A ficção trabalha com a imaginação, com a fantasia, com a ilusão. A relevância do relato ficcional não está naquilo que é dito e sim na ilusão que cria no receptor (leitor ou ouvinte). No Quixote tudo se passa “como se” o fidalgo e o cavalheiro fossem a mesma personagem; “como se” os gigantes fossem moinhos de vento; “como se” os moinhos de vento fossem gigantes; “como se” a venda fosse castelo; “como se” o castelo fosse venda; “como se” a camponesa fosse a mais linda do Toboso; “como se” a mais linda do Toboso fosse uma camponesa; “como se” Dom Quixote fosse um louco; “como se” o louco fosse Dom Quixote. A magia da ficção está na ilusão criada pelo “como se” alguma coisa, “como se” outra, “como se” as duas ao mesmo tempo, “como se” várias coisas e todas ao mesmo tempo – é o caso do Quixote. Como já foi dito, a intencional indeterminação, a ambigüidade e até o silêncio, são recursos utilizados por Cervantes para criar múltiplas leituras possíveis, todas elas verossímeis e legítimas[x].
Quando se perde a máscara do “como se” acaba a magia, o relato ficcional se transforma numa outra coisa: registro histórico, documento burocrático, alegoria didática, pseudoficção. É o que acontece na suposta morte de Dom Quixote: a personagem deixa de ser vista “como se” fosse um cavalheiro andante. Não há mais o que fazer: Dom Quixote morre. Acabou a magia, acabaram as aventuras, acabou o faz de conta que tanto nos deleitou. Acabou o Quixote.
A recusa das personagens, a esta altura todas quixotizadas, em admitir a cura/morte do cavalheiro, representa a nossa recusa, há muito tempo quixotizados, em admitir o final do romance, em permitir a dispensa do “como se”, do faz de conta. Me engane que eu gosto! Gritamos em coro todos nós, personagens manchegos. Quero mais mentiras, desejo mais sonhos, enganos, burlas e enredos. Preciso da ilusão, necessito da ficção. Assim como o sonho, a ficção está condenada a acabar com o despertar da ilusão. Contudo, enquanto houver explicação continuará a ilusão[xi]; não há imago em Literatura, não há uma forma definitiva na ficção literária, o movimento é constante. Se o Quixote acabou, então nos resta continuar com as possíveis explicações para mantermos a ilusão manchega. A mancheias, dai-me então explicações, comentários, críticas e interpretações, a mancheias.
A força do realismo está em aceitar todos os mundos possíveis; quanto mais possíveis são aceitos, maior a indeterminação, menor a previsibilidade, mais interessante e rico o texto. Toda interpretação é uma refração caleidoscópica, e como tal, é sempre diferente a todas as outras possíveis e infinitas refrações. A ficção é esse velar e desvelar constante, nunca teremos uma interpretação final. A ilusão continua.
Se escrevermos “este é um moinho de vento”, estaremos mentindo, estaremos fazendo o jogo da literatura.
Considerações finais.
Assim, pois, este trabalho chega ao seu fim, sobrevém a hora de fechá-lo. Espera-se que o objetivo haja sido alcançado, mas, se falhou, resta a frase do Bispo de Hipona: Si enim fallor, sum (se me engano existo)[xii]. Do mesmo modo que no Quixote (pouco importa se o cavalheiro venceu ou perdeu, se errou ou acertou), o fato relevante é que ele (o livro) existe, ou melhor, que ele (Dom Quixote) insiste.
Rua dos Douradores, 25 de julho de 2006.
[i] Ríos, Vicente de los, “Análisis del Quijote” no Prólogo à edição do Quijote, de Cervantes, Real Academia Española, Madrid, 1780, 4 vols.; 2.ª ed. 1782, 4 vols.
[ii] Cf. Introdução à edição do Quixote de Andrés Amorós, p. 24.
[iii] Lembremos que “ilusão” é: um engano dos sentidos ou da mente, que faz que se tome uma coisa por outra, que se interprete erroneamente um fato ou uma sensação; em psiquiatria, percepção deformada de objeto.
[iv] Evidente que essa mentira, como todas as outras que encontramos na história, faz parte do relato ficcional; e, com ela Cervantes passa a fazer parte da ficção, ele também passa a ser mais uma personagem (como os vários narradores e o desocupado leitor, nós). Para Cervantes tudo é ficção e está a serviço dela (inclusive ele mesmo e sua biografia – “o capitão cativo”).
[v] “Así que, Sancho, deja ese caballo, o asno, o lo que tú quisieras que sea”, Dom Quixote falando com seu escudeiro em (I, 25), após o episódio do “bacielmo”. Há momentos em que é primordial a utilização da palavra correta para designar uma coisa, em outros pouco importa. Chamar o animal que carrega a Sancho de cavalo, asno, ou outro nome, não faz diferença, Sancho continua sendo Sancho e o animal um animal. Agora chamar o cavalheiro de fidalgo, isso não dá; assim como não dá para chamar a bacia do barbeiro ou elmo de Mambrino de “bacielmo”, isso não dá.
[vi] Um gesto “fidalgo” é um gesto nobre, generoso.
[vii] Como veremos no capítulo 2.
[viii] Sancho narra à duquesa a sua viagem sobre Clavilenho, na qual, ao afastar um pouco o lenço que lhe cobria os olhos, ele pode ver que estava a um palmo e meio do céu e também pode ver toda a terra e todos os homens. Todos os que ouvem sabem que Sancho mente, pois se trata de uma brincadeira que fizeram com o escudeiro e seu senhor, e, de fato, eles não voaram coisíssima nenhuma e mal se afastaram do chão. Surpreende a sinceridade de Dom Quixote que narra exatamente o que ele sentiu, que é coerente com o sucedido na realidade, e conclui que “ou Sancho mente, ou Sancho sonha” (II, 41).
[ix] Porém, ninguém tem a ilusão, nem muito menos a certeza, de ver um “bacielmo”, isso nada mais é do que jogo de palavras.
[x] Nas palavras de Luiz Costa Lima: Com o “como se” o mundo se desdobra em outros mundos. “Mimesis e história em Auerbach”.
[xi] A ficção literária é uma rua de duplo sentido, um intenso e constante movimento, sem ponto de parada; não se pode afirmar: eis o sentido último da obra. (o eterno retorno?) pois não há uma semântica última; depende em que direção sopram os ventos da história. “Quando muda o vento, a obra parece dizer outras coisas daquelas que nela costumávamos perceber”. Idem. Ibidem.
[xii] “Pues si no me puede entender, no sé cómo lo diga; no sé más, y Dios sea conmigo” Sancho Panza, (II, 7).