DO INFINITO E DO LABIRINTO NO ALEPH.[1]

 

Doutorando Esteban Reyes Celedón (UFRJ)

 

O pensamento se dá, basicamente (pelo menos para os homens que pensam serem os únicos seres que pensam), em três áreas do conhecimento humano: Ciência, Arte e Filosofia[2]. Dado isto, pode-se dizer que, quando um cientista se pergunta: o que é a ciência? Não está fazendo ciência. Assim como, quando um artista se pergunta: o que é a Arte? Não esta fazendo arte. Mas, quando um filósofo se pergunta o que é a Filosofia? Esse sim, está fazendo filosofia, está filosofando; ou seja, ao se indagar sobre seu próprio ofício, o filósofo já está desenvolvendo (exercendo) o seu ofício; o questionamento sobre o que é a filosofia, já é filosofia. Surge, então, uma dúvida em todos aqueles que têm algum afeto com a arte de escrever:

- A Literatura não se há interessado sempre por si mesma?

- Evidente meu querido...

- E quando a Literatura se interessa por si, não o faz de uma maneira literária, ou seja, dentro dos moldes (ou modos) da Literatura?

- Claro que sim.

- Nesse caso, a Literatura, ao contrário das outras artes, tem certa semelhança com a Filosofia; as duas compartilham a curiosidade de se questionarem por elas mesmas e tentarem responder a essa inquietação, cada uma ao seu modo: a Filosofia num discurso filosófico (que bem pode ser um ensaio filosófico); a Literatura numa narração literária (que pode ser um ensaio literário ou uma prosa ficcional).

Contudo, é interessante notar que, com certa freqüência, bons textos literários falam não só de literatura como também de filosofia (ou questões filosóficas). Assim como, grandes filósofos escreveram suas obras de forma literária, para começar pelo maior de todos eles, Platão[3]. O filósofo grego escrevera em forma de diálogos; e sua personagem principal atendia pelo nome de Sócrates. Esse Sócrates, inicialmente, ou seja, nos primeiros diálogos, fazia referência ao mestre de Platão, o filósofo Sócrates, bem como a suas idéias filosóficas. Porém, aos poucos, ou seja, nos diálogos intermediários, essa personagem vai se distanciando do seu homônimo histórico, tanto física como intelectualmente, e vai ganhando independência e originalidade; até chegar à maturidade, por exemplo em As Leis, onde sequer aparece esse tal de Sócrates (pura filosofia platônica).

Curioso constatar que na literatura encontramos algo similar. Miguel de Cervantes no seu quatrocentão (ou quadrissecular, como queiram chamá-lo) Dom Quixote, faz com que sua personagem principal crie uma outra, suposta personagem fictícia, a partir de uma jovem vizinha real, Aldonza Lorenzo; a nova personagem é chamada de Dulcinea del Toboso, pois seria da aldeia real de El Toboso. Desta maneira, o romance desenrola-se, ou talvez seja mais apropriado dizer enrola-se, enquanto a personagem principal, que a essa altura responde pelo nome de dom Quixote da Mancha (por ser natural da Mancha ou, quem sabe, por não passar de uma mancha no meio de uma página; há controvérsias) procura a sua suposta amada Dulcinea del Toboso na sua aldeia, na estrada ou mesmo em sonhos (na cova de Montesinos; Borges diria no Aleph), sem poder encontrá-la; nem poderia, visto que, a “senhora de seus pensamentos” de real só tinha o nome da aldeia. Ao poucos, Dulcinea vai perdendo toda referência à realidade, até chegar ao final da obra, no último capítulo, onde é chamada apenas de Dulcinea (sem El Toboso).

Tanto no caso do Sócrates de Platão como no da Dulcinea de dom Quixote, as personagens fictícias, com referências reais, têm como função, entre outras, persuadir o leitor a aceitar a história fictícia como se real fosse (no Aleph de Borges há uma personagem com o nome Carlos Argentino e outra Borges).

Mas, voltando aos textos literários que falam de filosofia, ou melhor, de questões filosóficas (que não deixam de ser literárias), Jorge Luis Borges, que dispensa apresentações e adjetivos, faz parte do grupo de escritores que em muitos dos seus trabalhos aborda problemas filosóficos.

- Quais problemas? Quais trabalhos?

- Muitos.

- Tantos quantos adjetivos?

- Quiçá. Porém, os adjetivos calam-se por serem democráticos; por que nomear alguns e calar outros? O silêncio denuncia a justa convivência entre muitos deles. Já no caso dos problemas filosóficos e dos trabalhos, é diferente; não por causa do Borges, entretanto por delimitações e estratégias do presente trabalho; o espaço, aqui, é finito.

- Então, o que vai ser tratado aqui?

- Como o indica o próprio título deste trabalho: o infinito e o labirinto.

Sabe-se que as indagações sobre o labirinto povoam a literatura desde a Grécia clássica[4]; do mesmo modo que as reflexões e referências ao infinito. Borges não fica alheio a esse debate; no seu El Aleph (que em espanhol, como substantivo, deveria ser álef, contudo, como será visto, trata-se de um conceito, por isso recomenda-se manter a escrita e não aportuguesá-la para alef), relata com esmero e sutileza esses casos; dentro de uma narração ficcional, consegue inserir essas questões fundamentalmente reais.

Apesar da palavra “labirinto” aparecer uma única vez no conto (BORGES, 1957, p. 164), ela está implícita no problema do infinito; que, aliás, aparece múltiplas vezes nomeado: logo no início fala-se de “uma série infinita” (BORGES, 1957, p. 151); depois “parecia dilatar até o infinito as possibilidades” (BORGES, 1957, p. 159); até chegar ao Aleph “como transmitir aos outros o infinito Aleph...?” (BORGES, 1957, p. 163); e, o problema da enumeração de “um conjunto infinito” (BORGES, 1957, p. 164).

O conto é narrado na primeira pessoa por um tal de Borges (qualquer semelhança com a realidade não é coincidência)[5], quem constata que, após a morte de Beatriz, o universo tinha mudado mas ele não. A partir de então, passa a visitar a casa onde ela morara para cumprimentar seu pai e seu primo Carlos Argentino (possível alusão ao primo que conduz a dom Quixote até a cova de Montesinos), sempre no dia 30 de abril, suposto aniversário de Beatriz. Ano após ano, se repetia a nostálgica e melancólica visita à casa da rua Garay. Numa dessas oportunidades, o primo mostrou ao saudoso Borges uma estrofe do seu poema “A terra”, onde se fazia menção a Homero (A Odisséia) e Hesíodo (Os trabalhos e os dias). Curiosamente, o outro primo, aquele do Quixote (II, 22), também era escritor, e igualmente fazia alusão aos clássicos gregos, no caso a Ovídio (A metamorfose). Interessante notar que, o tal Borges, ao meditar sobre a necessidade de um prólogo para o poema de Carlos Argentino, faz referencia ao Quixote de Cervantes – ao famoso Prólogo, aquele do “desocupado leitor”.

Chega-se ao âmago do conto. O primo telefona ao tal Borges para lhe dizer, irritadíssimo e triste, que a casa seria demolida; e confessa-lhe que para terminar o poema era indispensável a casa, pois num determinado ângulo do porão havia um Aleph. Segundo o próprio Carlos Argentino, um Aleph é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos; ou então, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do universo, vistos de todos os ângulos – ou seja, o ângulo de todos os ângulos.

O tal Borges volta à casa da querida Beatriz, desta vez, não era 30 de abril; ao ver um retrato daquela “perdida para sempre”, com um sorriso “mais intemporal que anacrônico” – outra referência ao Quixote, onde a personagem principal é “um anacrônico cavalheiro”; e, ao infinito, sempre intemporal, mas não necessariamente eterno -, lhe diz: eu sou Borges. Do mesmo modo que dom Quixote, o tal Borges sabe bem quem ele é.

O primo convida a dom Quixote, desculpem, leia-se o tal Borges, a descer pela cova, ou melhor, ao porão. São tantas as alusões ao Quixote, que fazem qualquer um, ou qualquer texto, confundir-se (será que eu sou algo a mais do que um texto? Talvez um historiador arábigo?)[6].

O estreito porão “tinha muito de poço”; o tal Borges desce sozinho, deita-se, porém, não dorme nem sonha (só para diferenciar-se do cavalheiro); segue as instruções do primo e fixa o olhar no décimo nono degrau da pertinente escada.

“Fechei os olhos, e, ao abri-los vi o Aleph” (BORGES, 1957, p.163).

Aleph é a primeira letra do alfabeto da língua sagrada, mas, com quais letras, com quais palavras pode-se transmitir a outrem o infinito Aleph?

No Aleph está a Terra, e na Terra outra vez o Aleph e no Aleph de novo a Terra...

- O que é isso senão um labirinto?

- Sim, um labirinto infinito, sem saída; um quadro de Escher[7]; o círculo criativo de Varela[8]. Todo lugar sem saída, por menor que seja, torna-se infinito[9].

Vê-se, também, “um labirinto partido”[10] que pode ser Talca, Paris ou Londres. Uma metrópole é um labirinto partido, pois, ela tem saída.

Chega-se assim a um esboço do que seja um labirinto para Borges. É um lugar, no espaço, não no tempo (senão seria eterno). Esse lugar pode ser o Universo, a Terra, uma cidade, uma rua, uma casa, um quarto ou até mesmo um porão, uma escada, um degrau ou simplesmente um ângulo. Se tiver saída será um labirinto partido, se não tiver, um labirinto infinito. Qualquer espaço, seja ele infinito como o Universo ou finito como um quarto ou um ângulo, é labirinto se estiver fechado e infinito se não tiver saída.

- E se não há saída, então não haverá fio nem Ariadne?

- Muito bem! Pelo menos você, desocupado leitor, não está perdido; ou devo chamá-lo de Teseu?

- Talvez seja Teseu, visto que me sinto perdido, surge uma dúvida: qual seria o propósito de Borges em falar/reflexionar sobre o labirinto?

- Pois, como bem se sabe, a literatura é um labirinto. Labirinto artificial (ou metafórico), de brincadeiras, de faz de conta, de imaginação; mas também é a possibilidade de viver outras vidas, de ser feliz, de sentir prazer. O livro, enquanto criação literária, seria a extensão do ser, e, como tal, real[11].

Ao colocar um livro à frente de um espelho, consegue-se reproduzir o labirinto que é a Literatura (principalmente se há outro espelho atrás do livro), pois trata-se de um livro (ou uma imagem) dentro de outro livro, que por sua vez está dentro de um outro, e assim ao infinito (ou talvez seja mais apropriado dizer desde o infinito, ab initio)[12]. Fica fácil ver a similaridade entre esta concepção da Literatura e o efeito criado pelo Aleph. Borges está a falar, claramente, sobre a Literatura. El Aleph é um livro que pensa a Literatura, se pensa a si mesmo; é labiríntico e infinito.

E por falar de infinito...

Sem dúvida no conto de Borges há várias alusões ao Quixote, contudo, quando chega ao Aleph, a referência é à Monadologia do filósofo Leibniz (1646-1716). Foi ele quem criou o conceito de mônadas, as quais seriam expressões diferentes de uma mesma realidade total, o Mundo, um Ponto de Vista, reflexo do universo desde uma perspectiva (LEIBNIZ, 1983). A mônada, unidade indivisível, é a substância para Leibniz, e cada uma delas é diferente a todas as outras, consequentemente, cada Ponto de Vista é diferente um do outro; em outras palavras, cada uma vê, exprime ou reflete o mesmo mundo, ou parte deste, de uma forma diferente. Como diz Rafael Pividal quando fala sobre as mônadas de Leibniz: na mônada está o mundo inteiro, contudo o mundo é exterior à mônada (PIVIDAL, 1981, p.184).

- Qualquer semelhança com o Aleph que está na Terra, e na Terra outra vez o Aleph que está na... não é coincidência.

- Quer dizer que o Aleph é uma mônada?

- Melhor dizer que “um Aleph” é uma mônada.

Para o tal Borges há (ou houve) outro Aleph. Porém, se pode haver um segundo Aleph, poderá haver um terceiro. E como três elementos similares de uma mesma série são suficientes para se ter a idéia de infinito (uma série infinita)[13], pode-se dizer que há infinitos “Alephs”, como há infinitas mônadas. Aliás, Alef no vocabulário matemático, é a designação genérica dos números cardinais transfinitos (ou seja, de um conjunto infinito). Portanto, o Aleph, além de ser infinito (por reproduzir, ou, para utilizar a linguagem de Leibniz, refletir o Mundo que é infinito), também faz parte de uma série infinita.

Na metafísica de Leibniz, este Mundo (entenda-se Universo) é infinito, pois é composto de infinitas mônadas; para ele este Mundo só é real porque antes (ontologicamente falando) é possível.

- É ou era possível?

- Não, não se trata de antes no tempo, é um antes fora do tempo, um antes ontológico, por isso se diz: antes é possível (ele foi, é e será sempre possível). Lembre-se que Leibniz, além de ser filósofo, também era matemático; na matemática não há tempo, fala-se sempre no presente.  

A novidade que Leibniz introduz é o conceito de Mundo Possível. Assim como este Mundo é possível, há outros Mundos igualmente possíveis; há infinitos Mundos Possíveis; porém, só um é atual, só um se realiza, este (ou aquele, do tal Borges).

No final do conto, após a casa ter sido demolida, a personagem confessa: aquele era um falso Aleph, pois, há outro. Calma! Já foi dito que se há outro, pode haver outros; e, havendo outros, infinitos outros, não quer dizer que o primeiro, ou qualquer um, seja falso. Todo Aleph é válido, do mesmo modo que todos os elementos de uma série são válidos.

Há infinitos “Alephs”, todos eles existem, entretanto, só um insiste, este, o Aleph da Literatura. Ou, então, não existe nem insiste nenhum deles. Nesse caso, é dever, de todos aqueles amantes da Literatura, imaginar que existe pelo menos um, o do tal Borges[14].

 

 

Referências Bibliográficas

 

BLANCHOT, Maurice.  O livro por vir.  São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BORGES, Jorge Luis.  El Aleph.  Buenos Aires: Emecé Editores, 1978.

BORGES, Jorge Luis.  “El hilo de la fábula”  in  Los ConjuradosBuenos Aires: Alianza Editorial, 1985.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de.       Don Quijote de la Mancha.  Edição e notas de Francisco Rico (edición del IV centenario).  Madrid: Santillana Ediciones Generales / Real Academia Española, 2004.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de.       Don Quijote de la Mancha. Edição e notas e Francisco Rico, (inclui volume só de comentários e referências bibliográficas). Barcelona: Crítica, 1998. Disponível em: <http://cvc.cervantes.es/obref/quijote/indice.htm>  Acesso em: 14 fev. 2006.

LEIBNIZ, G. W.         Monadologia.  Buenos Aires: Aguilar, 1983.

PIVIDAL, Rafael.       “Leibniz ou o Racilnalismo Levado ao Paradoxo”  in  História da Filosofia 3. A filosofia do mundo novo.  Dirigido por François Châtelet.  Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

 

Rua dos Douradores, 02 de abril de 2006.

 


 

[1] Texto apresentado no X Congresso Internacional da ABRALIC, Lugares dos Discursos, no Simpósio O Lugar da Filosofia na Teoria da Literatura, coordenado pelo professor Gustavo Bernardo, UERJ, Rio de Janeiro, 02 de agosto de 2006.

[2] Dizem que o homem (incluindo aqui as mulheres) não é o único animal que pensa; mais apropriado seria dizer que o homem (como sinônimo de ‘espécie humana’) é o único animal que pensa que não é animal.

[3] Outros nobres exemplos são: Lúcio Apuleio (124-180) era filósofo e escritor (autor da Metamorfose ou o asno de ouro); Friedrich Nietzsche (1844-1900), para citar um nome mais conhecido; bem como, Henri Bergson (1859-1941) ganhador do premio Nobel de literatura de 1927; entre outros.

[4] A palavra “labirinto” vem do latim labyrinthu e esta do grego labýrinthos; bem como “dédalo”, que é sinônimo de labirinto, e vem do nome Dédalo, do arquiteto grego construtor do labirinto de Creta.

[5] Assim como Cervantes, Borges se compraz em confundir o leitor, confundir o objetivo com o subjetivo, o mundo do leitor com o mundo do livro; características que fazem de tudo e de todos algo a mais do que seu sentido imediato.

[6] A cova de Montesinos é, para Cervantes, a possibilidade do conhecimento e da criação literária; assim como a caverna para Platão. “Claro que Cervantes no se quedó en puras burlas, para calar en el remitente platónico de la caverna como ámbito que explica el proceso del conocimiento y, a la par, el de la misma creación literaria”. Aurora Egido, comentário ao capítulo XXII da segunda parte do Quixote (Cervantes, 1998).

[7] Mavrits Cornelius Escher, artista plástico.

[8] Francisco Varela, Biólogo chileno, autor do artigo “El círculo creativo. Esbozo historiconatural de la reflexividad”, e da tese da Autopoiesis (em conjunto com Matuana).

[9] No livro de Maurice Blanchot, o capítulo VIII leva como título “O infinito Literário: O Aleph”, onde se afirma que “todo lugar absolutamente sem saída se torna infinito” (BLANCHOT, 2005, p.137).

[10] “vi un laberinto roto (era Londres)” (BORGES, 1957, p. 165-6).

[11] Do mesmo modo que a Bíblia é a extensão do Ser.

[12] O Quixote é esse livro à frente do espelho, ele é labiríntico; e mais, de certa maneira, ele tenta reproduzir a Biblioteca Universal, que como toda biblioteca também é labiríntica. Não é por acaso que Borges faz tantas referências à obra maior de Cervantes.

[13] Do mesmo modo que aquelas bonecas coloridas de madeira: ao se pegar uma, verifica-se que pode ser aberta, ao abri-la encontra-se outra similar dentro da primeira; essa segunda boneca também pode ser abrerta, ao abri-la verifica-se que há uma terceira boneca similar dentro da segunda; olha-se com atenção e perplexidade para essa terceira boneca; nela está o infinito, pois, tudo leva a acreditar que ela também poderá ser aberta e dentro dela haverá outra, e dentro dessa outra, outra, e outra, e outra... Não é necessário abrir a terceira boneca; o infinito já está dado.

[14] “Nuestro hermoso deber es imaginar que hay un laberinto y un hilo” (BORGES, 1985).

 

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