JORGE EDWARDS E A MEMÓRIA CRIADORA
Yo soy un novelista de la historia,
de la memoria, del pasado, del tiempo.
Jorge Edwards
Todos nós sabemos que a memória cumpre um papel de relevância na criação literária. Mas é interessante examinar a maneira como o escritor se apropria da memória e quais os agenciamentos que faz com ela. São coisas bem diferentes: a relevância da memória e a relevância da criação, isto é, a obra literária. Posso ter várias obras que trabalhem com a memória, mas nem por isso todas elas serão de relevância.
Em Bosquejo de una filosofía, Ferrater Mora afirma que há pelo menos três modos de estudar a obra de um escritor: o modo erudito, o crítico e o interpretativo. Este último é o escolhido e utilizado no presente trabalho.
Para Ferrater Mora, os praticantes do modo interpretativo começam por simpatizar com o autor estudado – simpatizar no sentido de ter a vontade de compreensão: ‘simpatizar com o autor’ significa primeiramente penetrar em sua obra, desentranhar suas atitudes, esquadrinhar seus supostos, penetrar em suas intenções. O interessante é que, agindo desta forma, podemos pensar de uma maneira diferente daquela do autor estudado sem que isso nos leve a falsificar o pensamento do mesmo. Interpretar uma obra também pode ser ‘potencializá-la’, ‘atualizá-la’, como se fosse a interpretação, ao piano, de uma valsa de Chopin, em que o público pode gostar ou não da apresentação, independentemente de gostar ou não do compositor.
O objeto deste estudo é o livros de contos do escritor chileno, Prêmio Cervantes 1999, Jorge Edwards (Santiago, 1931), "Fantasmas de carne y hueso". É muito interessante a maneira como o autor lida com os ‘fantasmas’. Eles são tão reais quanto os homens que sofrem com sua presença; são fantasmas que vêm do passado, que nos assustam, que são reais, pois reais são os nossos temores; são ‘fantasmas de carne e osso’: dos quais podemos falar, que podemos sentir e que nos fazem chorar. Estes ‘fantasmas’ são análogos ao ‘homem de carne e osso’, do qual nos fala Unamuno no seu livro "Del sentimiento trágico de la vida".
Porém, há nos contos de Edwards um outro ingrediente que potencializa, ainda mais, seus fantasmas. Trata-se da memória. Todos eles ou relatam uma história já vivida há alguns anos (como na infância do personagem, que provavelmente seria a infância do próprio autor), ou uma história presente em que se revivem afetos, sentimentos do passado (individual ou coletivo). A interseção entre presente e passado, entre atual e virtual, entre intuição e memória é tal que, na verdade, já não fica claro se suas histórias são vivências do passado ou lembranças do presente. Talvez se possa dizer ‘cicatrizes’, que, por mais que sejam presentes, sempre nos remetem ao passado. A esta altura faz-se necessário lembrar que, em alguns campos do pensamento (como por exemplo na Filosofia), achar, apontar e, por conseguinte, estabelecer um problema é um ato primordial, muito mais do que resolvê-lo; e uma explicação, mesmo que filosófica, é apenas a explicação de um único homem.
O pensamento do filósofo francês Henri Bergson (Paris, 1859-1941), pode ajudar a entender o que vem a ser a memória na obra de Edwards.
Para Bergson, o homem tem uma tendência a misturar espaço-tempo (extensão-duração) e matéria-memória (percepção-lembrança). Isso acaba provocando uma série de ‘falsos problemas’. O espaço é extenso, pode ser dividido ao infinito (é o que faz Leibniz para criar o cálculo infinitesimal); porém, o tempo é duração, é intenso, não pode ser dividido, somente vivido. A memória, que para Bergson é duração, na sua natureza pode, e deve, ser vivida; e tudo que é vivido é. À vista disso, é um ‘falso problema’ perguntar-se onde são guardadas as lembranças, elas se conservam em si mesmas, por intensidade, não há um lugar (extenso) onde elas ficam armazenadas - prova de que as lembranças não são para serem guardadas nem esquecidas.
Temos dificuldade para pensar na sobrevivência em si do passado porque acreditamos que o passado já foi, deixou de ser. Confundimos o Ser com o ser-presente. Deleuze explica que o presente não é; seria um puro devir sempre fora de si; não é, atua; seu elemento próprio não é o ser, é o ativo ou o útil. Já do passado podemos dizer que deixa de atuar ou de ser útil; mas não deixa de ser; pode ser inútil e inativo, mas É, se confunde com o ser em si. Não podemos dizer que ‘foi’, posto que é o ‘em si do ser’, a forma pela qual o ser se conserva em si (em oposição ao presente, forma na qual o ser se consome e sai fora de si). Em suma, o presente a cada instante já ‘foi’; o passado ‘é’, é eternamente, em todo momento. E se é a todo momento, também ‘é’ no presente que ‘foi’. O passado não segue ao presente (o tempo não é seqüencial ou linear como a extensão); o passado é pressuposto pelo presente como a condição pura, necessária, sem a qual não passaria. Isto é, o presente remete a si mesmo como passado. Presente e passado não são sucessivos, coexistem.
Voltemos à memória. Há, segundo Bergson, dois tipos de memória. A primeira é a memória-repetição, aquela que acumula impressões do passado, como um álbum de fotografias. São lembranças frias sem vida, muitas vezes motivo de tristeza, e mesmo quando trazem alegria é uma alegria melancólica. Já a segunda é a memória-contração ou memória-pura, a faculdade de ‘re-cordar’ (como a reminiscência platônica): re-cordar, no seu sentido primitivo de reprodução de estados anteriores, uma vivência atual que carrega no seu seio todo ou parte do passado. É uma memória criadora: criadora de novos presentes; criadora de novos passados, que nunca existiram antes.
Segundo esta teoria begsoniana, não vamos do presente ao passado, da percepção à lembrança. Melhor devemos dizer que vamos do passado ao presente, da lembrança à percepção. Mas o passado, a lembrança, só se atualiza quando se transforma em imagem. E esta imagem bem pode ser uma obra literária, um conto de Jorge Edwards, onde há uma adaptação do passado ao presente, uma utilização do passado em função do presente. Este processo é denominado por Bergson de ‘a atenção à vida’. Todavia, faz-se necessário que a lembrança se encarne, se materialize, se atualize, não em função do seu próprio presente (do qual é contemporânea), mas sim em função de um novo presente em relação com o qual é agora passado.
Isto é, exatamente, o que faz Jorge Edwards em seus contos no livro Fantasmas de carne y hueso. A partir de uma lembrança do passado, que se eleva à categoria de imagem, vai até um outro presente (que não necessariamente é o presente do ato de escrever), do qual a imagem é passado, para criar um novo presente ou talvez um novo passado (tanto faz, o que é de relevância é a criação do novo). Esta coexistência de lembrança com percepção (passado com presente) cria o que Leibniz chama de ‘mundo possível’ e que nós em literatura chamamos ‘relato realista ou verossímil’ (claro está que nem todo relato realista é fruto deste processo). Ficam por conta da genialidade do escritor os matizes da história, em que tempo se passa: no passado, no presente, no futuro, ou até mesmo a história pode ser lida em tempos múltiplos.
O que fascina em Edwards é a sua capacidade de criar vários contos e em cada um deles o matiz da leitura do tempo é diferente. Por exemplo, o primeiro conto, La sombra de Huelquiñur, à primeira vista, pode ser interpretamos como uma história que acontece no passado do personagem principal, na sua infância (em 1939). Seriam as lembranças de umas férias em que o personagem perde sua inocência de menino para ganhar a madurez de um jovem (o conto descreve o primeiro amor, seu primeiro caso, a perda da virgindade). Contudo, também é possível interpretar o relato como uma caricatura (uma imagem), que na verdade denuncia todo um processo de mudança política de um país (em 1973): não é um menino que perde a inocência, é um povo que perde a democracia; não é uma avó que reprime o instinto natural de maturidade, é o ditador que reprime o direito à liberdade; não é um terremoto que destrói a cidade (e a casa da amada), é um bombardeio que destrói a sede do governo democrático.
Há outros exemplos, outros contos onde também encontramos esse jogo de memória e tempo, de passado e presente; contos que se desenrolam em Santiago, na Espanha, na França dos anos sessenta. Inclusive neste último, Sardinas y manzanas, há muita semelhança com uma de suas crônicas (também com o título de Sardinas y manzanas), prova mais do que convincente do realismo dos seus contos. O autor brinca com a memória, brinca com o real, com o passado e o presente, com os dois ao mesmo tempo. Não sabemos mais distinguir o real do verossímil. Tudo é possível, porque tudo é memória criadora. Novos mundos possíveis. Literatura librada a sua mais alta potência.
Conclui-se este trabalho com algumas palavras do próprio Jorge Edwards:
"A escrita, acima de tudo, é uma forma de fidelidade, a exigência de um acordo consigo mesmo, e que a gente tem o direito e talvez até a obrigação de transmitir a experiência a outrem".
Esteban Reyes Celedón – UFRJ
5ª semana de Neolatinas, UFRJ.
Rua dos Douradores, 29 de setembro de 2003.