V COLÓQUIO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM LETRAS NEOLATINAS

Para além de realistas e românticos

Esteban Reyes Celedón

 

Descartes - que era apenas uma criança quando apareceu a primeira parte do Quixote, e já um jovem ao aparecimento da segunda – disse em certa ocasião: Já se falou muito da palavra de Deus, vamos falar agora das ações Divinas.

Michelangelo, no século anterior, pintara, na Capela Cistina, a criação do homem. Nela vemos Deus dando vida a Adão, não pela palavra, mas, pelo toque, por um sutil movimento do braço.

O Movimento está associado ao devir. A ação está associada ao movimento. Ou seja, qualquer ação, por mais sutil que seja, é movimento, logo, também está associada ao devir. Michelangelo e Descartes, cansados da inércia divina, da palavra que não mais criava, procuram valorizar o que ela tem de mais mundano, o movimento, o devir.

Entre o Artista Italiano e o Filósofo Francês, temos Cervantes que na sua grande obra, Quixote, dá voz ao suposto autor arábico, Cide Hamete, quem nos pede que: "se lhe dêem louvores, não pelo que escreve, mas pelo que deixa de escrever" (II, 44).

Inspirados nisto, podemos anunciar: já se falou muito das palavras de Cervantes (ou Cide Hamete) vamos falar agora das ações que ficaram no silêncio.

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Basicamente há duas tendências predominantes nos interpretes do Quixote. De um lado os realistas, que consideram a obra uma parodia das novelas de cavalaria, ressaltando o lado cômico das façanhas do herói considerado um louco. Do outro, os românticos, que em vez de valorizar o riso, destacam a dimensão trágica do personagem; e, em vez de loucura, vêem o poder criador da imaginação humana.

Nós consideramos que O Quixote pode ser analisado de uma forma diferente. Quando dizemos: "para além de realistas e românticos", não queremos dizer com isso que o nosso trabalho, a nossa interpretação, seja superior ou que tenha mais valor do que os trabalhos e interpretações dos nossos colegas realistas e românticos. O que queremos ressaltar é simplesmente que o nosso estudo é diferente, no sentido de não levar em conta as caraterísticas valorizadas pelos colegas já mencionados. Assim como o livro de Nietzsche "para além do bem e do mal", onde o filósofo apresenta uma outra possibilidade, fora do campo moral (das regras de conduta estabelecidas) e do imoral (a ação de infringir tais regras). Para além do moral e do imoral estaria o "Amoral", isto é, o que não leva em conta as regras de conduta estabelecidas. Cada um seria livre para escolher seu caminho de realização de uma vida feliz e harmoniosa.

Nós defendemos a liberdade do leitor. Liberdade que lhe permita ter a sua própria interpretação. Valorizamos o potencial de múltiplas leituras que o Quixote comporta. E muito mais do que isso, valorizamos a possibilidade que o Quixote nos dá de podermos criar novas alianças e interpretações. Para além de românticos e realistas, Cervantes, com suas indeterminações e seus silêncios, nos presenteia com uma obra que é capaz de incentivar novas criações (como a nossa), é nos dá uma aula de vida. Unamuno já nos advertia: Escrevi para repensar o Quixote contra cervantistas e eruditos, para fazer obra de vida do que foi e segue sendo para muitos letras mortas; o vivo é o que cada um de nós descobre, independente dos propósitos de Cervantes. (Del sentimiento trágico de la vida, p.256). Porque a vida não é, acontece. A vida está, no devir. O livro não é vida, é inércia; a leitura é movimento, é devir, é vida.

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Maurice Blanchot trabalha com o conceito de Palimpsesto. (antigo material de escrita, principalmente o pergaminho, usado, em razão de sua escassez ou alto preço, mediante raspagem do texto anterior; ou manuscrito sob cujo texto se descobre a escrita ou escritas anteriores). Trata-se aqui de Palimpsesto no seu sentido metafórico, isto é, uma obra que foi escrita com o suporte de outra ou outras, as quais servem de inspiração. Para o olhar do leigo apenas mais uma obra, para o olhar atento do especialista (desocupado leitor) por trás dela se desvendam outras obras anteriores.

O Quixote pode ser classificado como um Palimpsesto. Nele podemos descobrir a Biblioteca Universal de Cervantes. Existem as alianças explícitas, a biblioteca de Dom Quixote (I, 6); mas, também, existem outras alianças, desta vez implícitas, é o caso da literatura grega e latina, e a filosofia platônica e neoplatônica (Identificamos no Quixote um esforço por descrever um caminho possível em direção às Idéias transcendentais). Dessa influência explicita já se falou muito: em literatura, os livros de cavalaria (Amadis de Gaula); em filosofia, Erasmo de Roterdã (Elogio da loucura). Agora, queremos falar daquela aliança que ficou no silêncio. Para que perder tempo dizendo que o Quixote é uma paródia aos livros de cavalaria, se também podemos afirmar que o Quixote é o maior dos livros de cavalaria. Interessante é constatar que Cervantes leu os livros de cavalaria; porém também leu Lucio Apuleio (A metamorfose o ou o asno de ouro), como leu os clássicos gregos, como leu, e entendeu muito bem, a filosofia de Platão. Relevante é entendermos como todas essas obras participaram na produção cervantina. Cabe-nos ressaltar quais são os problemas que o Quixote recupera ao introduzir, de forma implícita ou explícita, essas obras clássicas.

Não se trata de uma redução à imitação de um modelo interior ou exterior. O que uma obra diz, o diz silenciando algo. Há nela um vazio que a constitui. Mas também há uma tendência a dizer-se de novo, com a esperança de dar fim a esse silêncio que a compõe. Estas são questões que estão escondidas na ambigüidade do discurso irônico. Consideramos a riqueza da ficção realista do Quixote desde o ponto de vista da sua intencional indeterminação. O verossímil sempre é mais do que a verdade, pois carrega em si os vários possíveis de uma ficção. Cabe a nós desvelá-los

Podemos afirmar que o uso de palavras com mais de um significado faz parte de uma intenção maior que ultrapassa a obra; trata-se da riqueza da indeterminação que é essencial à ficção realista, essencial ao pensamento da multiplicidade, que, em literatura, Cervantes está inaugurando. O texto histórico persegue a verdade do real, aquilo que de fato aconteceu. O texto literário, e em particular o texto realista, trabalha com o verossímil (que na sua essência é múltiplo); não está interessado no fato real e histórico (ou, talvez, para sermos mais exatos deveríamos dizer que não está preso ao fato real); trabalha com uma trama que poderia ser real, que poderia ser contada diferente, que pode ser como também pode não ser, que é na sua essência multiplicidade. A ficção realista relata uma história que pode ser várias. E Cervantes (assim como todos os outros possíveis autores do Quixote), ao escrever e escolher as palavras, explora, com magistral competência, tais possibilidades.

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E por falar em autor, entendemos que é o leitor quem determina uma das múltiplas (ou infinitas) interpretações da obra. Ao dizermos que no Realismo há vários possíveis entendimentos (ou interpretações), de concreto não dissemos nada. Dizer que no céu há infinitas estrelas, só é aceitável se, pelo menos, conhecemos (ou identificamos) algumas estrelas concretas. Assim, para que aceitemos que haja infinitas interpretações do Quixote, é necessário que conheçamos ao menos algumas, que possamos indicar algumas possíveis interpretações concretas. E essas interpretações concretas são dadas pelo leitor e não pela obra. A obra nos presenteia com a possibilidade de várias interpretações, várias leituras diferentes. Mas, quem concretiza cada uma destas possíveis leituras é o leitor. Teríamos o que chamamos de Leitor/Autor: leitor da obra, autor da interpretação (o que nada mais é do que a concretização de uma das possíveis leituras/interpretações).

A partir deste entendimento podemos afirmar que uma obra realista possui uma infinidade de autores: ao menos um Autor que escreve o texto (no Quixote seriam três ou mais); e incontáveis Leitores/Autores (nós, desocupados leitores).

Nosso propósito é explorar a ambigüidade e o silêncio da obra para apresentar outras possíveis visões dos acontecimentos do Quixote, para além de românticos e realistas.

 

Mesa 13, Auditório E1, 9:30h

coordenação: Maria Lizete dos Santos

UFRJ, Sexta-feira, 19 de agosto de 2005.

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